17 dezembro, 2006

PARA ESTE NATAL DE 2006
















"Porque é que a minha mãe chora todas as noites?"
perguntava -me o morganhinho.

A tão proclamada solidariedade com os mais desfavorecidos, com os pobres, com os indigentes e com os que nada têm é a atitude que mais parece despertar sempre que há Natal - a que mais rapidamente volta a uma profunda sonolência após ter beneficiado a parte que dela não necessita Diria mesmo que é a que mais vezes é utilizada por todos quantos têm necessidade de se mostrarem e de se evidenciarem.
Tenho a certeza que nenhum dos nossos primeiros se vão olvidar de a mencionar nos pomposos e habitués discursos da quadra.
Um treta de hipocrisia ...
Não resisto, por isso, a narrar a pequena história passada numa das freguesias rurais da nossa ilha. Foi-me contada pelo "morganhinho", um traquinas de 8 anos, quando, no final de Setembro, pisávamos o fruto do néctar dos deuses e também manjar dos bandos de pardais que enchiam o papo bicando os melhores e mais maduros bagos.
Nessa tal freguesia , numa pequena casa, mesmo junto ao mar, vivia uma família muito numerosa. Ao todo eram onze. O pai, a mãe e nove filhos. Destes, todos de tenra idade, três eram raparigas e os restantes rapazes.
A casa onde habitavam era propriedade do estado, que a havia comprado para os albergar. Todavia, não tinha havido ainda tempo, nem dinheiro, para a dotar das mínimas condições de habitabilidade necessárias àquele agregado familiar tão numeroso.
A maior parte do dia os filhos passavam-no no "calhau". Quando o tempo piorava e o mar embravecia, os mais pequeninos, alias quase todos, entretinham-se a brincar nalguns dos poucos quartos da casa, pois que não tinha quintal. Daí que a degradação avançasse por cada dia que passava, com particular incidência nos paredes ainda revestidas a barro e pintadas a cal.
O mais novo tinha cerca de ano e meio. De olhos azuis, pele clara e cabelo de um loiro doirado, muito parecido com as irmãs. Saía ao pai, único ganha pão da casa. Possivelmente descendente dos bretães que povoaram uma das localidades do norte da Ilha.
"Era nele que queriam pegá", dizia-me o morganhinho .

O pai refugiava-se na taberna sempre que lhe apetecia e quando não lhe davam trabalho. Gastava fiado. Por isso, poucas eram as vezes que dava dinheiro à mulher para pagar o padeiro e a mercearia onde já nada comprava, por lhe terem cortado o crédito.
" Os políças queriam levá os mês irmãs no jipe"- desabafou o traquinas.

Nalgumas casas das redondezas o pão começara a desaparecer dos sacos plásticos deixados pelo padeiro nas mãos das portas.
As autoridades ficaram em alvoroço. A polícia investigava .
Pelo menos num dos jornais da cidade o acontecimento foi notícia de primeira página. Descreveu-se a miséria da família, as míseras condições de habitabilidade da casa. Que o Presidente da Junta e os Serviços Sociais pouco faziam para resolver o caso. Que a solução de uma família com tão grande disfunção social passava pelo internamento de parte das crianças ou a sua adopção por boas famílias.
Os vizinhos concordavam, os parentes também.
"Um dia, vê um senhô de gravata e a senhora que trabalha no hospital, aquela c’os olhos grandes, trouxeram a roupa pó menino, os sapatinhos, chupa-chupas pá gente e um invelope pá minha mãe" –confidenciou-me o meu pequeno companheiro.

"Porque é que a minha mãe chora todas as noites"- perguntava-me o morganhinho.

Um Bom Natal para todos.
A.V.

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